domingo, 17 de agosto de 2008

Véspera da Água


Tudo lhe doía
de tanto que lhes queria:

a terra
e o seu muro de tristeza,

um rumor adolescente,
não de vespas
mas de tílias,

a respiração do trigo,
o fogo reunido na cintura,
um beijo aberto na sombra,
tudo lhe doía:

a frágil e doce e mansa
masculina água dos olhos,

o carmim entornado nos espelhos,

os lábios,
instrumentos da alegria
de tanto que lhes queria:

os dulcíssimos melancólicos
magníficos animais amedrontados,
um verão difícil
em altos leitos de areia,

a haste delicada de um suspiro,
o comércio dos dedos em ruína,
a harpa inacabada da ternura,

um pulso claramente pensativo,

lhe doía:

na véspera de ser homem,
na véspera de ser água,
o tempo ardido,

rouxinol estrangulado,

meu amor: amora branca,

o rio
inclinado
para as aves,

a nudez partilhada, os jogos matinais,
ou se preferem: nupciais,
o silêncio torrencial,

a reverência dos mastros,
no intervalo das espadas

uma criança corre
corre na colina

atrás do vento,

de tanto que lhes queria,
tudo, tudo lhe doía.

Eugénio de Andrade

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