domingo, 17 de agosto de 2008

Sonho meu...






















Sonhei contigo pousando teu sorriso,
em meus lábios.
Vinhas das sombras dos rochedos,
molhados pela espuma do mar,
onde tantos beijos trocamos.

Teus cabelos longos e ondulados,
refrescavam meu corpo dourado,
do sol por ti tapado.
Foram as tuas mãos, ou sombra,
que em mim se deitou?
E que meu corpo despertou,
Lascivo e excitado?

E terá sido a música do toque dos teus lábios,
que me levou, em passeio, pelas bordas das ondas...
que meu sossego inquietou,
na dança dos abraços... rodopiando?

Se sonho estou bem,
Se não sonho bem estou, contigo ó miragem!
És feita de quê sombra?
Areia, seixos, luz... ou de lembranças?

Deixa-me estar então...
Quero continuar a lembrar-te assim...
Refrescante em mim!...

Carlos Reis




Véspera da Água


Tudo lhe doía
de tanto que lhes queria:

a terra
e o seu muro de tristeza,

um rumor adolescente,
não de vespas
mas de tílias,

a respiração do trigo,
o fogo reunido na cintura,
um beijo aberto na sombra,
tudo lhe doía:

a frágil e doce e mansa
masculina água dos olhos,

o carmim entornado nos espelhos,

os lábios,
instrumentos da alegria
de tanto que lhes queria:

os dulcíssimos melancólicos
magníficos animais amedrontados,
um verão difícil
em altos leitos de areia,

a haste delicada de um suspiro,
o comércio dos dedos em ruína,
a harpa inacabada da ternura,

um pulso claramente pensativo,

lhe doía:

na véspera de ser homem,
na véspera de ser água,
o tempo ardido,

rouxinol estrangulado,

meu amor: amora branca,

o rio
inclinado
para as aves,

a nudez partilhada, os jogos matinais,
ou se preferem: nupciais,
o silêncio torrencial,

a reverência dos mastros,
no intervalo das espadas

uma criança corre
corre na colina

atrás do vento,

de tanto que lhes queria,
tudo, tudo lhe doía.

Eugénio de Andrade

Poesia e Prosa


















Deste modo ou daquele modo,
Conforme calha ou não calha,
Podendo às vezes dizer o que penso,
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever não fosse uma coisa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma coisa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.

Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto,
Procuro encostar as palavras à ideia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras.


Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.


Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a natureza produziu.


E assim escrevo, querendo sentir a natureza, nem sequer como um homem,
Mas como quem sente a natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem, ora mal,
Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.


Ainda assim, sou alguém.
Sou o Descobridor da natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago no Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele-próprio.

Alberto Caeiro

POESIA














O que nós vemos das coisas são as coisas.
Por que veríamos nós uma coisa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
Nem ver quando se pensa.

Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
Nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.

Não sei o que é a Natureza: canto-a.
Vivo no cimo dum outeiro
Numa casa caiada e sozinha,
E essa é a minha definição.

Alberto Caeiro

sábado, 16 de agosto de 2008

O Mar

O mar quando quebra na praia
É bonito, é bonito
O mar... pescador quando sai
Nunca sabe se volta, nem sabe se fica
Quanta gente perdeu seus maridos seus filhos
Nas ondas do mar
O mar quando quebra na praia
É bonito, é bonito

Pedro vivia da pesca
Saia no barco
Seis horas da tarde
Só vinha na hora do sol raiá
Todos gostavam de Pedro
E mais do que todas
Rosinha de Chica
A mais bonitinha
E mais bem feitinha
De todas as mocinha lá do arraiá

Pedro saiu no seu barco
Seis horas da tarde
Passou toda a noite
Não veio na hora do sol raiá
Deram com o corpo de Pedro
Jogado na praia
Roído de peixe
Sem barco sem nada
Num canto bem longe lá do arraiá

Pobre Rosinha de Chica
Que era bonita
Agora parece
Que endoideceu
Vive na beira da praia
Olhando pras ondas
Andando rondando
Dizendo baixinho
Morreu, morreu, morreu, oh...

O mar quando quebra na praia
É bonito, é bonito...

(Dorival Caymmi)